Autorretrato
A história de cada um de nós não é uma história única. Quem
eu sou não é a minha narrativa. Não é a narrativa contada pelos meus pais, nem
pelos meus amigos, nem pelos meus ex-professores, nem ex-chefes. Ela é um pouco
de cada um e é nenhum ao mesmo tempo, e é um devir.
Porém, em alguns momentos da vida, paramos de narrar a nós
mesmos nossa história e nos focamos muito no dia a dia. Algumas vezes nos
focamos mais nos sofrimentos do dia a dia. Por focamos nos sofrimentos,
deixamos de contar nossas histórias para contar as histórias de sofrimento.
Desta maneira, apagamos de nossa memória todas as outras coisas que
classificamos como boas e más que vivemos até aqui. Tornamo-nos a história de
sofrimentos diários.
Recuperar a história de nossas vidas não é tarefa fácil e
por vezes é uma atividade cruel. Escondemos de nós mesmos verdades duras e nos
escondemos por trás de cinismos convenientes. Mas, mesmo assim, é preciso
resgatar nossas histórias. Histórias tem poder. Narrativas envolta de fogueiras
têm poder. Histórias na madrugada têm mistério e poder. Narrar é dar vida ao que
já não existe enquanto fato, mas há com fundamento.
Aquilo que sustenta o que somos e fazemos, o que narramos, é
o passado. Quando nos esquecemos de contar a nós mesmos pra que tanto lutamos,
pra que mudamos e o que buscamos vencer, esquecemo-nos o que nos fundamenta, o
que nos presentifica como seres únicos. Deixamos de existir enquanto concretude
singular, tornamo-nos um amontoado abstrato de dicas visuais.
Perdemo-nos numa floresta proibida, deixamos de lado o que
nos torna humanos. Deixamos de lado nossas fantasias infantis e promessas bobas
que nos aquecem a alma. Quando esquecemo-nos das promessas, esquecemos o que
nos move no mundo. Deixando de lado esta chama ardente, nos tornamos frios,
apáticos, fracos e cansados. Deixamos de ser inteiros capazes de mudar o mundo.
Não quero, porém, dizer que mudar o mundo seja tarefa fácil,
simples e que seja alcançada em uma única vida. Nem mesmo estou querendo
afirmar que existam outras encarnações. Na verdade, não quero afirmar nada.
Estou narrando a mim mesmo fazendo este resgate de quem sou. E eu sou alguém
que gosta de contar histórias. Gosta de estar com amigos. Gosta de honra
promessas nunca anunciada a amigos, família, amores e desconhecidos.
Após dias, semanas cruéis, havia esquecido pelo o que lutar.
Havia esquecido pelo o que sonhar. Havia esquecido de mim. Ao buscar resposta
aonde não havia perguntas, encontrei uma história:
Havia uma criança que
sempre se sentiu diferente, que não se encaixava no mundo. Mesmo com este
sentimento de inadequação, esta criança sempre estava cercada por sorrisos. Aos
poucos, esta criança percebeu que, mesmo ela se sentindo diferente e sem se
encaixar no mundo que a rodeava, as pessoas gostavam de estar com ela. Ao que
parece, os outros a consideravam um encaixe perfeito, uma boa companhia para
compartilhar momentos.
No decorrer dos anos,
muitos desafios e dificuldades foram aparecendo. Muitas inclusive com pintura
de irreversíveis. Mesmo sem perceber e odiando pedir ajuda, sempre havia uma
mão amiga ou mesmo desconhecida que, por algum motivo mágico e nunca explicado
pelo mundo, a estendia.
Esta criança, então,
prometeu sigilosamente que o seu destino seria ir o mais longe e alto possível.
Ela não tinha interesses em poder ou fama, ela queria honrar a todos que a
ajudaram ao longo dos anos. Ela queria mostrar que seria possível mudar seus
mundos. Ela queria trazer esperança onde não existisse. Ela queria ser também
alguém que ajudava.
Quando esta criança
esquece todo este caminho percorrido, ela fica frágil, ela chora. Ela se sente
só e abalada. Mas, como um vento forte que vem das praias e oceanos, as
lembranças lhe preenchem os pensamentos. E ela sonha. Sonha com as pessoas que
a amam, com os amigos esquecidos, com as casas abandonas e invadidas, sonha com
tudo e com todos. Sonha com a cor do barro das paredes da casa da avó. Sonha
com as goiabeiras no quintal. Ela sonha. Ela vive, vive a lembrança viva como
chama.
E, então, o adulto
sonha pelos olhos da criança que se perguntava que tipo de pessoa se tornaria e
se percebe... Percebe que se tornou exatamente aquilo que esperava ser. Então, a
criança, agora adulto, se percebe sonho. E, assim, mais uma vez adormece e
sonha com outros mundos novos e possíveis. Ela sonha outros eus, outros nós,
outros outros.
Após esta pequena narrativa, finalizo indicando uma pequena
receita alquímica, um autorretrato: Somos oroboros. Somos serpente que devora a
si. Somos eternos e finitos. Somos contraditórios de inicio ao fim. Somos
narrativas que se constrói a si. Somos tudo e somos nada. Somos fogo, somos
água. Somos eterno por vir!