quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Autorretrato



Autorretrato

A história de cada um de nós não é uma história única. Quem eu sou não é a minha narrativa. Não é a narrativa contada pelos meus pais, nem pelos meus amigos, nem pelos meus ex-professores, nem ex-chefes. Ela é um pouco de cada um e é nenhum ao mesmo tempo, e é um devir.

Porém, em alguns momentos da vida, paramos de narrar a nós mesmos nossa história e nos focamos muito no dia a dia. Algumas vezes nos focamos mais nos sofrimentos do dia a dia. Por focamos nos sofrimentos, deixamos de contar nossas histórias para contar as histórias de sofrimento. Desta maneira, apagamos de nossa memória todas as outras coisas que classificamos como boas e más que vivemos até aqui. Tornamo-nos a história de sofrimentos diários.

Recuperar a história de nossas vidas não é tarefa fácil e por vezes é uma atividade cruel. Escondemos de nós mesmos verdades duras e nos escondemos por trás de cinismos convenientes. Mas, mesmo assim, é preciso resgatar nossas histórias. Histórias tem poder. Narrativas envolta de fogueiras têm poder. Histórias na madrugada têm mistério e poder. Narrar é dar vida ao que já não existe enquanto fato, mas há com fundamento.

Aquilo que sustenta o que somos e fazemos, o que narramos, é o passado. Quando nos esquecemos de contar a nós mesmos pra que tanto lutamos, pra que mudamos e o que buscamos vencer, esquecemo-nos o que nos fundamenta, o que nos presentifica como seres únicos. Deixamos de existir enquanto concretude singular, tornamo-nos um amontoado abstrato de dicas visuais.

Perdemo-nos numa floresta proibida, deixamos de lado o que nos torna humanos. Deixamos de lado nossas fantasias infantis e promessas bobas que nos aquecem a alma. Quando esquecemo-nos das promessas, esquecemos o que nos move no mundo. Deixando de lado esta chama ardente, nos tornamos frios, apáticos, fracos e cansados. Deixamos de ser inteiros capazes de mudar o mundo.

Não quero, porém, dizer que mudar o mundo seja tarefa fácil, simples e que seja alcançada em uma única vida. Nem mesmo estou querendo afirmar que existam outras encarnações. Na verdade, não quero afirmar nada. Estou narrando a mim mesmo fazendo este resgate de quem sou. E eu sou alguém que gosta de contar histórias. Gosta de estar com amigos. Gosta de honra promessas nunca anunciada a amigos, família, amores e desconhecidos.

Após dias, semanas cruéis, havia esquecido pelo o que lutar. Havia esquecido pelo o que sonhar. Havia esquecido de mim. Ao buscar resposta aonde não havia perguntas, encontrei uma história:

Havia uma criança que sempre se sentiu diferente, que não se encaixava no mundo. Mesmo com este sentimento de inadequação, esta criança sempre estava cercada por sorrisos. Aos poucos, esta criança percebeu que, mesmo ela se sentindo diferente e sem se encaixar no mundo que a rodeava, as pessoas gostavam de estar com ela. Ao que parece, os outros a consideravam um encaixe perfeito, uma boa companhia para compartilhar momentos.

No decorrer dos anos, muitos desafios e dificuldades foram aparecendo. Muitas inclusive com pintura de irreversíveis. Mesmo sem perceber e odiando pedir ajuda, sempre havia uma mão amiga ou mesmo desconhecida que, por algum motivo mágico e nunca explicado pelo mundo, a estendia.

Esta criança, então, prometeu sigilosamente que o seu destino seria ir o mais longe e alto possível. Ela não tinha interesses em poder ou fama, ela queria honrar a todos que a ajudaram ao longo dos anos. Ela queria mostrar que seria possível mudar seus mundos. Ela queria trazer esperança onde não existisse. Ela queria ser também alguém que ajudava.

Quando esta criança esquece todo este caminho percorrido, ela fica frágil, ela chora. Ela se sente só e abalada. Mas, como um vento forte que vem das praias e oceanos, as lembranças lhe preenchem os pensamentos. E ela sonha. Sonha com as pessoas que a amam, com os amigos esquecidos, com as casas abandonas e invadidas, sonha com tudo e com todos. Sonha com a cor do barro das paredes da casa da avó. Sonha com as goiabeiras no quintal. Ela sonha. Ela vive, vive a lembrança viva como chama.

E, então, o adulto sonha pelos olhos da criança que se perguntava que tipo de pessoa se tornaria e se percebe... Percebe que se tornou exatamente aquilo que esperava ser. Então, a criança, agora adulto, se percebe sonho. E, assim, mais uma vez adormece e sonha com outros mundos novos e possíveis. Ela sonha outros eus, outros nós, outros outros.

Após esta pequena narrativa, finalizo indicando uma pequena receita alquímica, um autorretrato: Somos oroboros. Somos serpente que devora a si. Somos eternos e finitos. Somos contraditórios de inicio ao fim. Somos narrativas que se constrói a si. Somos tudo e somos nada. Somos fogo, somos água. Somos eterno por vir!

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